Como a indústria da seca afeta a população pobre

Como a indústria da seca afeta a população pobre
Reassentamento Alagamar em Jaguaretama, no Ceará

Do Movimento dos Atingidos por Barragens

Seca, pobreza, miséria e fome são palavras constantemente ligadas ao Nordeste brasileiro. Mas de onde vêm essa fama? São mesmo miseráveis os nordestinos?

Conforme explica José Josivaldo Alves de Oliveira, cearense e militante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a situação não é bem essa. A história do Nordeste é marcada por injustiças e contradições que têm punido os trabalhadores e beneficiado as elites do país. “É muito perceptível que a seca produz uma contradição permanente. São negados acesso à água, terra e produção, e por outro lado as grandes obras e investimentos beneficiam apenas as grandes elites”, afirma.

Com a maior concentração de estados do Brasil, sendo nove no total (Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe), o Nordeste tem 25% de seu território constituído pelo semiárido, bioma naturalmente quente e seco, com poucos meses de chuva e distribuídas de forma irregular. O solo tem predominância de ser areno-argiloso, ou seja, pobre/rochoso e cristalino. Devido à escassez de chuvas e baixa retenção dos solos, os rios em sua maioria são temporários.

Mesmo com características que parecem tornar a vida tão difícil, o semiárido nordestino está completamente povoado, com cerca de 25 milhões de habitantes entre 55 milhões no Nordeste como um todo. De acordo com Josivaldo, esse dado aponta que não há nada incomum na região para a vida humana, é preciso apenas saber conviver com ela. No entanto, o modelo de desenvolvimento adotado na região é desigual desde a colonização, negando direitos aos trabalhadores nordestinos.

Terra e água pra quem?

Para o militante, o Nordeste não se desenvolveu fazendo a distribuição da terra de acordo com a distribuição de água, dos reservatórios feitos ou planejados, criando uma contradição histórica. Segundo a Fundação Joaquim Nabuco existem mais 80 mil açudes de grande, médio e pequeno porte no Nordeste, com capacidade total de acumulação de 37 bilhões de m³ de água. Estes reservatórios, no entanto, não estão nas mãos dos trabalhadores, que acabam por depender de carros-pipa e outras formas de acesso à água para o consumo familiar de sua produção.

“O acúmulo da água desde os tempos da Coroa não foi em função do povo trabalhador e sim em função da economia agropecuária, que depois cria a cultura da produção irrigada”, explica Josivaldo. Atualmente, a produção irrigada é responsável pelo maior consumo de água. Em termos mundiais, estima-se que esse uso responda por cerca de 70% das fontes de água. No Brasil, segundo dados da Agência Nacional da Água (ANA) de 2007, o consumo na irrigação é de 69% e para animais de 11%, restando apenas 20% para o consumo humano.

Tecnologia pra quem?

Outra contradição que se une à distribuição desigual de terras é a falta de acesso a tecnologias de captação e acúmulo de água, que é voltada apenas para o setor agropecuário.

No semiárido brasileiro, em especial na região do Vale do São Francisco, estão localizadas as chamadas “ilhas de tecnologia”, onde a produção irrigada é responsável por grande parte da exportação de frutas do país. Para se ter uma ideia da riqueza produzida pelas águas no semiárido nordestino, em 2015 o Vale do São Francisco foi responsável por 99% de toda exportação nacional de uva. Isso gerou cerca de 72 milhões de dólares. Também no ano passado, saíram dali 85% de todas as mangas exportadas pelo Brasil, o que movimentou cerca de 184 milhões de dólares. Riqueza essa que está nas mãos das empresas exportadoras e não da população nordestina.

As áreas irrigadas no Brasil correspondem a 6,1 milhões de hectares, sendo 206.000 hectares de Perímetros Públicos Irrigados de responsabilidade do Ministério da Integração (MI), através da CODEVASF e DNOCS (2014). No Nordeste brasileiro e em especial no semiárido se concentra a maior parte dos Perímetros Públicos Irrigados de responsabilidade do MI, somando um total de 190.752 de hectares.

“Onde foi desenvolvido o perímetro irrigado, o custeio de infraestrutura, subsídios para produção e outros gastos ficou com o Estado, que depois passou a parte de lucro para o capital privado, por meio de concessões. Cerca de 70% desses perímetros públicos está com empresários atualmente”, denuncia Josivaldo.

E a seca, pra quem?

Alexandre Henrique Bezerra Pires é membro da Coordenação Executiva da ASA Brasil, Articulação do Semiárido Brasileiro, entidade que reúne organizações de trabalhadores da região. Ele afirma que a região passa por uma grande estiagem (escassez de chuvas) que já completa seis anos. No entanto, o modelo de desenvolvimento na região é tão desigual que não houve qualquer alteração no uso da água pelas grandes empresas de fruticultura nos últimos anos.

“As empresas de fruticultura irrigada no Vale do São Francisco usam a água sem regra ou controle, de forma indiscriminada e que não retorna ao mercado interno.  Esse modelo reforça a lógica da dependência dos mais marginalizados, gera ganho apenas para a elite do poder econômico e político”, analisa. Prova disso é que no ano de 2016 a exportação de frutas no Vale aumentou em quase 121%, comparando com o mesmo período de 2015.

Organização popular para mudar

A estiagem pela qual a região passa nos últimos seis anos não é novidade para os nordestinos. Outras grades secas foram registradas nas décadas de 1915, 1934 e outros anos, em todos os casos com mortalidade de população que beirou os milhares. Desta vez, as consequências da estiagem foram diferentes. Os especialistas Josivaldo e Alexandre apontam que a organização da população foi o grande diferencial.

O militante do MAB afirma que a seca é uma realidade no Nordeste. Mas nas décadas passadas o Estado era mais ausente, a desigualdade e desorganização popular era muito maior, por isso os nordestinos morriam em grande quantidade. Ele denuncia que as contradições vividas pela população nordestinas são os verdadeiros responsáveis pela fome e dificuldades dos nordestinos.

Josivaldo aponta que tudo isso vai levando a população ser tratada como miserável, faminta, sedenta, como a região com o maior número de analfabetos. “As elites sempre acharam que isso não seria revertido pela população organizada, mas não é o que vemos com as mudanças dos últimos anos”, diz.

No entanto, ele alerta para a necessidade ainda maior de organização e enfrentamento, na disputa com a classe dominante o tempo todo: antes, durante e depois das chuvas. “Resta entender melhor a realidade do Brasil, da economia mundial, da crise mundial e desafio da classe trabalhadora. Devemos organizar as bases do MAB em conjunto com os trabalhadores para defender a bandeira de Água para todos, sem acesso privilegiado, e o controle popular da água”, afirma.

A seca é um fenômeno natural que não possui uma definição rigorosa e universal. Pode ser entendida como deficiência em precipitação (chuva) por um extenso período de tempo, resultando em escassez hídrica com repercussões negativas significativas nos ecossistemas e nas atividades socioeconômicas. O conceito depende das características climáticas e hidrológicas da região abrangida e do tipo de impactos produzidos. Em termos de Brasil, seis meses sem qualquer precipitação no Semiárido, por exemplo, é considerado normal. Se isto ocorre no Sul ou na Amazônia, seria catastrófico.

A seca é considerada um dos principais limitantes que afetam a segurança alimentar e a sobrevivência de mais de dois bilhões de pessoas em todo o planeta. A eficiência produtiva nas regiões mais suscetíveis às estiagens depende de uma série de medidas de monitoramento e mitigação dos efeitos negativos desse fenômeno, através do uso racional e sustentável dos recursos hídricos (água), edáficos (solo) e da biodiversidade.

Os primeiros relatos de ocorrência de seca no Nordeste brasileiro datam do final do século XVI (1583/1585), quando cerca de cinco mil índios foram obrigados a fugir do sertão em função da fome. Desde então, inúmeros registros já foram feitos, considerando-se os períodos mais drásticos de seca os anos de 1615, 1692/93, 1709/11, 1723/27, 1744/45, 1776/78, 1790/93, 1831, 1844/46, 1877/79.

Calcula-se que a cada 100 anos há entre 18 e 20 anos com secas intensas. O século XX foi um dos mais drásticos, registrando 27 anos de estiagem, em que se destaca o período de 1903/1904, quando passou a constar na Lei de Orçamento da República uma parcela destinada às obras contra as secas. Já nos anos de 1979/1984 ocorreu a mais prolongada e abrangente seca da história do Nordeste, observando-se ainda estiagens intensas em 1993, 1998, 2001 e 2012/2014.

No ano de 1891 foi incluído na Constituição Brasileira um artigo que obrigava o Estado a socorrer áreas atingidas por desastres naturais, entre eles a seca. Atividades de combate aos efeitos desse fenômeno – como construção de açudes e barragens, perfuração de poços, assistência à população com distribuição de alimentos, formação de "frentes de trabalho" etc. – iniciaram-se em 1909, com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (Iocs), posteriormente denominada Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Desde então, diversas medidas têm sido tomadas, de forma que mesmo tendo ocorrido recentemente no Nordeste a maior seca dos últimos 50 anos, os efeitos para as populações foram bastante minimizados em função das políticas públicas existentes.

São Paulo viveu em 2014 a maior seca dos últimos 80 anos. Em 2012, cerca de 650 municípios da Região Sul estavam em situação de emergência por causa da seca, sendo 142 municípios no Paraná, 375 no Rio Grande do Sul e 133 em Santa Catarina. Apesar de ela nunca ter sido um fenômeno exclusivamente nordestino, aparentemente essas áreas têm se ampliado. Segundo alguns estudiosos, desde 1950 terras secas vêm aumentando quase 2% por década em todo o mundo, e o Brasil não é uma exceção. Entretanto, problemas como os que São Paulo enfrentou em 2014, especialmente de abastecimento de água, podem ser atribuídos não somente às mudanças climáticas como ao inchaço urbano e à infraestrutura insuficiente de abastecimento.

Diz-se que o grande problema do Semiárido é a seca. Entretanto, em muitos locais da região chega a chover até 800 mm anuais – quantidade que, em outros semiáridos do mundo, permite uma produção agrícola maior e, consequentemente, menos pobreza.

Entende-se, então, que o problema maior do Semiárido brasileiro não é a quantidade de água caída, mas forma como as chuvas se distribuem no tempo e no espaço.

É comum, por exemplo, um só trimestre registrar até 90% da precipitação anual. Da mesma forma, dentro de um ciclo de cultivo, muitas vezes a quantidade de chuva precipitada seria suficiente para uma colheita satisfatória se bem distribuída ao longo do ciclo. Entretanto, ela se concentra em uma ou duas chuvas e acaba não permitindo a produção e a colheita adequadas.

O fenômeno frequente da seca está restrito à região semiárida do Nordeste, que compreende uma área de 969.598,4 km2, abrangendo 1.133 municípios dos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, além do norte de Minas Gerais. Nas áreas litorâneas, o índice de chuvas é bem maior em função da umidade que vem do oceano. O mesmo vento poderia levar água para o sertão, já que o Semiárido nordestino não é cercado por cadeias de montanhas que barrem os ventos úmidos. Entretanto, a brisa marítima não é forte o suficiente para provocar chuvas em uma região maior que os 100 quilômetros da faixa costeira.

Grande parte do Semiárido está sobre o embasamento cristalino. Os aquíferos dessas áreas caracterizam-se pela forma descontínua de armazenamento. A água se localiza em fendas na rocha, onde se formam pequenos reservatórios e, tendo contato com o substrato, se mineralizam facilmente. Ou seja, as águas se tornam salinas ou salobras, servindo quase sempre somente para dessedentação animal. Em outras palavras, de uma maneira geral, os poços têm pouca água e a água, pouca qualidade.

Em algumas áreas do Semiárido, mesmo com baixa precipitação, tem-se praticado uma agricultura irrigada de grande pujança, com produção de frutas inclusive para exportação. O submédio São Francisco, na divisa dos estados da Bahia e Pernambuco, e o vale do Açu, no Rio Grande do Norte, são bons exemplos dessa agricultura de sucesso. Ocorre que isso não pode ser estendido para todo o Semiárido. Ainda que se possa pensar em ampliar bastante as áreas irrigadas, existem limitações de solo e de disponibilidade de água que não permitem que se faça irrigação em toda a região. Há estudos, inclusive, que apontam que apenas 5% do Semiárido atende os requisitos mínimos para o uso de irrigação.

Desde a década de 1980, entendeu-se que não era possível "combater" ou "enfrentar" a seca. Mudou-se, então, o olhar, aparecendo a palavra "convivência" como mais apropriada. O entendimento é de que, se por um lado o fenômeno natural sempre ocorreu e deverá inclusive se agravar e, por consequência, não dá pra ser combatido, por outro, pode-se desenvolver propostas e experimentar alternativas baseadas na ideia de que é possível e necessário conviver com ele.

Especialistas afirmam que, mesmo com todo o aparato moderno de equipamento e tecnologia, não há nada seguro que se possa prever além de 90 dias. No entanto, registros históricos apontam que as secas são cíclicas, repetindo-se fenômenos mais extremos a cada 13 anos, aproximadamente. Desta forma, elas não podem ser previstas com precisão, mas é possível que os governos e populações estejam preparados para minimizar seus efeitos.

Como consequência dessa seca, considerada a maior dos últimos 50 anos, houve grande frustração de safra em todas as áreas do Semiárido, perdeu-se grande parte do rebanho, especialmente de bovinos – não só por morte como também animais que foram vendidos por preços muito baixos para outras regiões –, houve grande perda das pastagens, uso predatório de plantas da Caatinga para alimentação animal, morte inclusive de muitas espécies nativas (em determinadas áreas essas mortes chegaram a 30 a 40% das plantas). O que houve de diferente dessa seca para outras de proporções semelhantes foi que na última não se observou o êxodo em massa da população de determinadas áreas, ou mesmo os saques em feiras e mercados. Também não houve morte de pessoas por fome e sede. Ainda que não seja uma solução definitiva para o problema, isto se deve em grande parte às politicas de complementação de renda ora em curso no país.

Quem vive no Semiárido já convive com a seca, e de uma forma ou de outra busca mecanismos para conviver com os seus efeitos. Passar oito a dez meses por ano sem chuva é comum. Ocorre que em uma seca dessas proporções é sempre difícil estar preparado. A preocupação em armazenar água para consumo humano e animal, o cultivo de plantas mais tolerantes, a implantação de reservas estratégicas para alimentar os animais e a conservação de forragem na forma de feno e silagem são práticas ainda incipientes, mas que já se observam em muitas áreas e que minimizam os prejuízos provocados pela seca.

Não existe uma receita pronta e que sirva para todos. Entretanto, é essencial que as famílias tenham acesso à água para consumo humano, para consumo animal e, em alguns casos, para alguma produção. Além disso, é necessário que se tenha uma gleba de terra com tamanho e qualidade suficientes para o sustento dos agricultores e de suas famílias. Havendo políticas que garantam isto, e entendendo que para se conviver nesse ambiente torna-se necessário ter sistemas de produção diversificados com cultivos alimentares, culturas de renda e, principalmente, pequenas criações, é preciso, cada vez mais, trabalhar com plantas mais resistentes (buscar inclusive opções entre espécies nativas), animais mais rústicos ainda que menos produtivos, além de se buscar uma harmonia com o ambiente em que se vive. Outra questão crucial para a convivência é a efetiva assistência técnica e extensão rural.