ARTIGO • • https://doi.org/10.1590/18094449202000590013 copiar Show Gabriella Hauber Sobre o autor
O objetivo deste artigo é analisar a forma como cidadãos ordinários entendem e discutem a violência letal contra mulheres e a relação dessas discussões com o enquadramento que diferentes notícias dão a esse tipo de ocorrência. Adotamos a análise de conteúdo como estratégica metodológica para analisar comentários da página do Facebook do jornal O Globo sobre três casos de assassinatos contra a mulher, com enquadramentos jornalísticos distintos. Observamos que o termo feminicídio pode incomodar mais os cidadãos que comentam do que os casos de violência em si. Feminicídio; Violência Contra a Mulher; Conversação Política; Deliberação Online; Facebook
The purpose of this article is to analyze how ordinary citizens understand and discuss lethal violence against women and the relation of these discussions to the framing that news articles give to this type of occurrence. Content analysis was the methodological strategy used to analyze comments posted on O Globo's Facebook page in response to news about three murders of women that had different journalistic framings. We note that the term femicide may disturb more people who comment than the murders per se. Femicide; Violence against Women; Political Conversation; Online Deliberation; Facebook
O objetivo deste artigo é analisar a deliberação online sobre o feminicídio. Mais especificamente, a forma como cidadãos ordinários entendem e discutem a violência letal contra mulheres e a relação dessas discussões com o enquadramento que diferentes notícias dão a esse tipo de ocorrência. A violência contra a mulher é pauta recorrente de movimentos feministas. Nos anos 1960 e 1970, em países como França e Estados Unidos, a discussão estava relacionada ao direito ao corpo, enquanto, no Brasil, a questão foi mais fortemente tematizada após o assassinato de Ângela Diniz e a posterior absolvição do assassino, conhecido como Doca Street, em 1976 (Blay, 2003; Sarmento, 2014SARMENTO, Rayza. Entre tempos e tensões: o debate mediado antes e depois da sanção da lei brasileira de combate à violência doméstica contra a mulher (2001 a 2012). Revista Feminismos (2), Salvador, BA, 2014 [ http://www.feminismos.neim.ufba.br/index.php/revista/article/view/115 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Parte desses estudos busca analisar a forma com que a violência contra a mulher é enquadrada e abordada pelos media (Bandeira, Vieira e Campos, 2017; Angelico et. al, 2014; Magalhães-Dias e Lobo, 2016MAGALHÃES-DIAS, Carolina; LOBO, Soraia. Changing representations of intimate partner femicides by a portuguese newspaper (2006 and 2014): from episodic to thematic frames. ex æquo (34), 2016 , pp.93-108 [ https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.07 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Ao contrário de outros estudos sobre deliberação online, não iremos verificar a deliberatividade das conversações em redes sociais, apontando em que medida elas se aproximam dos ideais normativos da deliberação (Barros e Carreiro, 2017BARROS, Samuel; CARREIRO, Rodrigo. O Facebook como plataforma para o comentário de notícias: uma análise da deliberatividade em cinco temas. In: MENDONÇA, R.; SAMPAIO, R.; BARROS, S (org.). Deliberação Online no Brasil: entre iniciativas de democracia digital e redes sociais de conversação . Salvador – BA, EDUFBA, 2017 [ http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/19267 - acesso em 08 de outubro de 2020 ].
Para respondê-los, este artigo se estrutura da seguinte maneira: em um primeiro momento, faremos uma breve discussão sobre media e feminicídio e, posteriormente, sobre Teoria Deliberativa e as críticas feministas à corrente. Em seguida, descreveremos a metodologia adotada. Por fim, apresentaremos os resultados e a discussão dos principais achados. Mulheres e feminicídio nos mediaA legislação brasileira que pretende promover a igualdade de gênero no Brasil ainda é recente. Até a sanção da Lei do Feminicídio (Lei Nº13.104/2015) pela então presidenta Dilma Rousseff, em 2015, o principal instrumento legal de combate à violência contra a mulher era a Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340/2006), que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher” -- violência essa entendida como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Nesse contexto, se inserem diferentes formas de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, com previsão de prisão do agressor. Além disso, a Lei Maria da Penha também prevê assistência à mulher vítima de violência e medidas protetivas. Uma das limitações da Lei Nº 11.340/2006 é restringir a violência ao ambiente familiar, deixando de lado o espaço público, extremamente machista. Apesar de ser considerada um importante avanço pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Lei Maria da Penha não conseguiu reduzir significativamente os casos de violência contra a mulher no Brasil. As notificações de violência contra esse público vem aumentando, o que mostra uma fragilidade do cumprimento da legislação. De acordo com o Mapa da Violência 2015, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de países com maior índice de feminicídio. Dados do DataFolha, divulgados em março de 2017, revelam que uma em cada três mulheres ouvidas pela pesquisa havia sofrido algum tipo de violência: 22% sofreram ofensa em 2016, o que representaria um total de 12 milhões de mulheres. Além disso, 10% das mulheres sofreram ameaça de violência física, 8% sofreram ofensa sexual, 4% receberam ameaça com faca ou arma de fogo, e 3% sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento e 1% levou, pelo menos, um tiro. As políticas de enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil foram criadas a partir de lutas dos movimentos feministas e pela presença de mulheres nos espaços políticos formais, que se intensificaram a partir da década de 1970 (Andrade e Matos, 2017ANDRADE, Luciana; MATOS, Marlise. A criminalização da violência contra as mulheres no brasil: de “legítima defesa da honra” à violação dos direitos humanos. Revista Sociais e Humanas (30), Santa Maria - RS, 2017 [ http://dx.doi.org/10.5902/2317175827565 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Gomes (2018)GOMES, Izabel Solyszko. Feminicídios: um longo debate. Revista de Estudos Feministas (26), Florianópolis – SC, 2018 [ http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2018v26n239651 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Machado e Elias (2018)MACHADO, Isadora Vier; ELIAS, Maria Lígia G. G. Rodrigues. Feminicídio em cena: Da dimensão simbólica à política. Tempo Social (30), São Paulo – SP, 2018 [ http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.115626 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Os media também possuem um papel fundamental para dar visibilidade e levar questões importantes para uma discussão na esfera pública (Maia, 2012MAIA, Rousiley. Deliberation, the media and political talk . New York – US, Hampton Press, 2012 .). Muitos desses crimes violentos ocupam periodicamente o noticiário brasileiro. E a maneira como o tema ganha visibilidade nos media pode ser uma forma tanto de contribuir para o enfrentamento da violência quanto de reprodução de desigualdades de gênero e estereótipos presentes na sociedade.
Flávia Biroli (2010)BIROLI, Flávia. Mulheres e política nas notícias: Estereótipos de gênero e competência política. Revista Crítica de Ciências Sociais (90), Coimbra – Portugal, 2010 , pp.45-69. [ https://journals.openedition.org/rccs/1765 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. As notícias que abordam especificamente a violência contra a mulher, raramente, contribuem para algum tipo de enfrentamento a esse tipo específico de violência. Apesar de todos os dados indicarem a alta frequência de feminicídio, por exemplo, os casos ainda são tratados de maneira isolada, sem contextualização (Wozniak e Mccloskey, 2010WOZNIAK, Jessica A.; MCCLOSKEY, Kathy A. Fact or fiction? Gender issues related to newspaper reports of intimate partner homicide. Violence Against Women (16), 2010 , pp.934-952 [ https://doi.org/10.1177/1077801210375977 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Além da contextualização, a partir, por exemplo, da exposição de dados estatísticos sobre violência contra a mulher, outro ponto importante é os media nomearem os assassinatos de mulheres por razão de gênero como feminicídio e não como homicídio. Nomear o feminicídio não é apenas trocar um vocábulo por outro, mas uma forma de dar visibilidade e localizar a violência de gênero, além de compreender esse tipo de crime como um fenômeno fortemente presente na estrutura social brasileira (Gomes, 2018GOMES, Izabel Solyszko. Feminicídios: um longo debate. Revista de Estudos Feministas (26), Florianópolis – SC, 2018 [ http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2018v26n239651 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Deliberação online e críticas feministasComo iremos analisar comentários no Facebook , é importante fazermos uma breve discussão sobre conversação e deliberação online. Ressaltamos novamente que não vamos analisar em que medida ocorre deliberação em ambientes online e tampouco a qualidade dessas discussões, nosso interesse é investigar como cidadãos ordinários discutem a violência contra a mulher. Acreditamos que há momentos deliberativos em conversações, em que, por exemplo, cidadãos engajam com os argumentos convocados, ao mesmo tempo em que não é possível esperar que eles estejam constantemente em cooperação (Goodin, 2005GOODIN, Robert E. Sequencing Deliberative Moments. Acta Politica (40), Basingstoke – U.K., 2005 , pp.182–196.). Além disso, acreditamos que analisar a conversação online a partir de critérios deliberativos, como respeito e justificação, pode revelar nuances sobre a formulação e a defesa de preferências dos cidadãos sobre temas de interesse público, como a violência, mais especificamente, a violência letal contra a mulher. Nas perspectivas clássicas da teoria deliberativa, a resolução dos conflitos e uma possível tomada de decisão poderiam se dar por meio de trocas argumentativas mutuamente aceitáveis e justificáveis e que levariam a um entendimento final. Cohen (2009)COHEN, Joshua. Deliberação e legitimidade democrática. In: MARQUES, Angela (org.). A deliberação pública e suas dimensões sociais, políticas e comunicativas . Belo Horizonte – MG, Autêntica, 2009 , pp.85-108. e Habermas (2011)HABERMAS, Jürgen . Direito e Democracia entre facticidade e validade vol.2 . Rio de Janeiro – RJ, Tempo Brasileiro, 2011 . discutem procedimentos ideais para que a deliberação aconteça de maneira mais justa, como igualdade, racionalidade argumentativa e inclusividade. Tais procedimentos, assim como o próprio conceito de esfera pública proposto por Habermas, foram alvos de muitas críticas, sobretudo por teóricas feministas. Fraser (1990)FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. Social Text (25/26), Durham – US, 1990 , pp. 56-80 [ https://www.jstor.org/stable/466240?seq=1#page_scan_tab_contents - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Apesar de a inclusividade ser um dos ideais normativos da deliberação e de trabalhar bem próxima à vertente, Iris Young (1999)YOUNG, Iris Marion. Difference as a Resource for democratic communication. In: BOHMAN, Janmes; REHG, William (org.). Essays on reason and politics: Deliberative Democracy . Cambridge – UK, MIT Press, 1999 , pp.383-406. também direciona críticas a Habermas, apontando que a deliberação tenderia a ser mais exclusiva do que inclusiva, uma vez que privilegiaria uma parcela da sociedade capaz de argumentar de maneira estruturada. Para ela, um modelo político justo deve ser baseado em uma discussão pública que inclua as diferentes perspectivas dos grupos sociais da sociedade. Nesse sentido, ela defende que diferentes formas comunicativas, não somente a racional/argumentativa, deveriam ser levadas em consideração para que a discussão seja justa. Young (1999)YOUNG, Iris Marion. Difference as a Resource for democratic communication. In: BOHMAN, Janmes; REHG, William (org.). Essays on reason and politics: Deliberative Democracy . Cambridge – UK, MIT Press, 1999 , pp.383-406. também apresenta ressalvas em relação ao ideal de bem comum presente em formulações deliberativas clássicas. Ela não vê problemas em os participantes defenderem seus próprios interesses, desde que sejam capazes de justificar as suas propostas. Essas e outras críticas ao modelo deliberativo habermasiano buscaram ser incorporadas por teóricos deliberacionistas em diferentes abordagens da corrente, que se propõe, entre outros, incorporar nos processos deliberativos diferentes formas de comunicação, como testemunhos, emoções e humor (Black, 2009BLACK, Laura W. Listening to the City: Difference, Identity, and Storytelling in Online Deliberative Groups , Journal of Public Deliberation (5), 2009 [ https://www.publicdeliberation.net/jpd/vol5/iss1/art4 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Media onlineO ambiente digital tem despertado crescente interesse entre os teóricos deliberacionistas. Apesar de suas mais variadas contradições, a internet tem sido vista como um importante fórum expandido de participação, abrigando diferentes visões sobre variados temas (Dahlgren, 2005DAHLGREN, Peter. The Internet, Public Spheres, and Political Communication: Dispersion and Deliberation. Political Communication (22), United Kingdom, 2005 , pp.147-162 [ https://doi.org/10.1080/10584600590933160 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. As redes sociais, de certa forma, abrigam parte das conversações cotidianas tão importantes para a deliberação. Tais conversas são, na maioria das vezes, espontâneas, informais e não constrangidas por procedimentos formais, como preconizado para a deliberação formal — embora, no caso das conversações online, possa haver constrangimentos vindos das plataformas nas quais ocorrem, como a presença de moderações (Maia et al., 2015MAIA, Rousiley; ROSSINI, Patrícia G. C. OLIVEIRA, Vanessa V.; OLIVEIRA, Alicianne G. Sobre a importância de examinar diferentes ambientes online em estudosde deliberação. Opinião Pública (21), Campinas – SP, 2015 , pp.490-513 [ http://dx.doi.org/10.1590/1807-01912015212490 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. MetodologiaPara responder às nossas questões de pesquisa, coletamos três posts da página do Facebook do jornal O Globo, que é a página de jornal impresso em atividade com o maior número de curtidas na plataforma (5.743.166 seguidores ) - a página do jornal Folha de S.Paulo ainda possui um maior engajamento, porém, o jornal deixou de utilizá- la por decisão editorial tomada em fevereiro de 2018. Escolhemos três posts publicados por O Globo que abordam o feminicídio de maneira distinta e que foram veiculados entre abril e dezembro de 2017. O primeiro post busca levantar uma discussão geral sobre o feminicídio. A chamada é a seguinte: “‘O termo feminicídio foi a coisa mais idiota que já inventaram’. Concorda?”. O segundo post não faz qualquer referência direta ao feminicídio, e apenas divulga a notícia de um homem que assassinou a namorada a facadas. No terceiro post , o próprio jornal, ao noticiar um assassinato de uma mulher, caracteriza-o como feminicídio. A escolha por posts de abordagens diferentes possibilita uma análise comparativa de discussões desencadeadas por diferentes mecanismos. Os três posts possuem, respectivamente, 407, 235 e 586 comentários, totalizando 1.227. Classificamos os comentários entre relevantes e não relevantes — aqueles que fugiam completamente do tema, e/ou possuem avaliação simples (ex. “muito bom”) ou sem sentido. Os 1.046 comentários classificados como relevantes foram analisados por meio da metodologia Análise de Conteúdo (Krippendorf, 2003), a partir da identificação das seguintes categorias analíticas:
Duas codificadoras codificaram 10% do material para realizar o teste de confiabilidade. Ao todo, foram codificados 39 comentários do post da matéria sobre o feminicídio de maneira geral, 52 comentários sobre a notícia de um crime nomeado como feminicídio e 20 comentários sobre a notícia do assassinato de uma mulher. Nenhuma variável ficou aquém do nível mínimo de confiabilidade recomendado de α=0,66 (Krippendorf, 2003). Os resultados completos estão apresentados na tabela abaixo: Tabela 1 : Teste de confiabilidade
ResultadosNosso primeiro questionamento está relacionado à forma como os cidadãos enquadram os casos de violência contra mulher, com o objetivo de analisar em que medida os comentários fazem algum tipo de correlação entre os crimes e o fato de a vítima ser mulher. Se observamos de maneira agregada, todos os comentários que apresentaram algum tipo de enquadramento, 73% enquadraram o crime como homicídio e apenas 27% como feminicídio. Ao observarmos os dados separadamente, de acordo com o tipo de notícia, os comentários daquela notícia que aborda o assassinato sem nomeá-lo como feminicídio (C) enquadraram o crime, principalmente, como homicídio, enquanto nas outras duas notícias (A e B), a maior parte dos comentários não apresentou nenhum tipo de enquadramento (ver Tabela 2 ). No caso da matéria geral sobre feminicídio (B), já era esperado o fato de os comentários não apresentarem um enquadramento sobre um crime, uma vez que ela não noticiava um ato de violência letal contra a mulher, propondo apenas um debate sobre o tema e o uso do termo. Contudo, quando comparamos as duas matérias que relatam um assassinato, os comentários naquela que aborda o crime como feminicídio (A) se aproxima mais da matéria geral (B) do que daquela que também noticia um assassinato (C), ou seja, mais da metade dos comentários não busca enquadrar o crime. Isso sugere que, no caso da matéria que relata um assassinato enquanto um feminicídio (A), as pessoas focaram mais a discussão no termo utilizado (feminicídio) e não no crime em si.
Tabela 2 : Enquadramento do crime nos comentários x Tipo de notícia Além do enquadramento, também buscamos identificar de que forma os cidadãos atribuem culpa para a violência sofrida por mulheres, que, de certa forma, também se relaciona ao enquadramento que é dado aos crimes. Assim como no caso do enquadramento, nos comentários na matéria que discute o uso do termo feminicídio de maneira geral (B), como já esperado, em sua maioria, não há atribuição de culpa (93%). Na notícia que aborda o assassinato de uma mulher como feminicídio (A), a maioria dos comentários também não apresenta atribuição de culpa (67%). Os comentários da notícia de um assassinato não classificado como feminicídio (C) atribuem culpa, principalmente, ao assassino, porém, em tom de crime comum (41%). A tabela abaixo mostra os dados completos: Tabela 3 : Atribuição de culpa nos comentários x Tipo de notícia
Em relação à presença de acordo e desacordo, a discordância é maior nas matérias que nomeiam o feminicídio (A e B) do que naquela que noticia o caso de assassinato sem utilizar o termo (C) (ver Tabela 4 ). Se olharmos o foco da interação, a maior parte dos comentários nos três posts não está endereçado a alguém, mas, quando está, é, sobretudo, a homens e mulheres (ver Tabela 5 ), o que pode indicar que a maior discordância ocorre entre eles.
Tabela 4 : Tipo de notícia x Presença de acordo e desacordo
Tabela 5 : Foco da interação x Tipo de notícia Quando cruzamos a presença de desacordo com o gênero da pessoa que comenta, de maneira agregada em todos os três posts , os dados reforçam que mulheres discordam mais de homens e vice-versa (ver tabela 6 ). Isso pode indicar que os posicionamentos e preferências em relação ao reconhecimento da existência de feminicídio está relacionado também ao gênero de quem comenta: homens tendem a questionar a necessidade do uso do termo, enquanto mulheres defendem a importânciade de dar visibilidade ao fato de que há mulheres que morrem apenas pelo fato de serem mulheres. Os argumentos mobilizados para defender ou criticar a Lei do Feminicídio e, consequentemente, a tipificação do crime enquanto um qualificador do homicídio, e o gênero de quem argumenta também dizem muito sobre como homens e mulheres entendem a violência de gênero. A maior parte dos comentários não convocou nenhum tipo de argumento (78%). Apesar de terem sido poucos os comentários com justificação, é interessante observar o gênero de quem apresentou justificativa. Os argumentos contrários à tipificação foram convocados, em sua maioria, por homens (89%), sendo os dois mais presentes: “Já existe o homicídio/a legislação já dá conta desses crimes, por isso, o feminicídio não é necessário” (22%); e “Mulheres também matam seus companheiros e suas companheiras” (16%). Já os favoráveis à Lei e ao uso do termo feminicídio foram mais convocados por mulheres (81%), sendo os principais: “Mulheres morrem somente pelo fato de ser mulher” (42%); e “Homens são os principais agressores e responsáveis pela violência contra a mulher” (23%).
Tabela 6 : Direcionamento da discordância x Gênero do usuário Por fim, investigamos a forma como as pessoas comentaram nos posts , observando se utilizaram linguagem neutra/respeitosa ou linguagem chula. A maior parte dos comentários nos posts de todas as três notícias utilizou linguagem neutra/respeitosa (70%), porém, o uso de linguagem desrespeitosa está mais fortemente associado aos comentários que apresentaram desacordo com a tipificação do feminicídio (77%). Além disso, quando há desacordo, o percentual de linguagem desrespeitosa é alto (53%), se comparado aos comentários em que há acordo (21%) e aqueles que não demonstram nem acordo nem desacordo (16%), conforme tabela abaixo: Tabela 7 : Acordo e desacordo x Respeito/Desrespeito
Discussão dos resultadosOs dados comparativos entre os comentários nos posts das três notícias revelaram um aspecto curioso: os comentários da matéria que noticia um assassinato e o nomeia como feminicídio (A) se aproximam mais da matéria que discute o uso do termo feminicídio de maneira geral (B) do que da matéria que noticia um crime sem nomeá-lo como feminicídio (C). Essa semelhança se deu tanto em relação ao enquadramento quanto à atribuição de culpa e à expressão de desacordo. Em relação ao enquadramento, os cidadãos que comentaram no post da matéria geral sobre feminicídio (B) e naquela que noticia um caso de feminicídio, assim o nomeando (A), estavam mais preocupados em discutir a legitimidade do uso do termo para caracterizar a violência letal contra a mulher, enquanto que na matéria que noticia um caso de violência sem nomeá-lo como feminicídio (C), há ocorrência maior de comentários que discutiam e condenavam o crime. Os comentários abaixo são exemplos disso:
O tipo de enquadramento também revela a tendência de os casos envolvendo violência letal contra a mulher serem tratados como casos isolados, sem levar em consideração um contexto maior de recorrência, que os próprios dados estatísticos nacionais sobre o problema revelam. É comum os agressores serem classificados como psicopatas e perturbados e não como consequência e frutos de uma estrutura social marcada pela desigualdade de gênero. Por isso também, esses crimes, frequentemente, são classificados como passionais, como um problema envolvendo um casal específico e não como um problema social, o que faz com que sejam entendidos como menos graves, inclusive pelas instâncias judiciais (Pasinato, 2011PASINATO, Wânia. “Femicídios” e as mortes de mulheres no Brasil. cadernos pagu (37), Campinas – SP, 2011 [ http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332011000200008 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Ao analisarmos os dados relativos à atribuição de culpa, ocorre algo parecido com o enquadramento: os comentários na matéria sobre o assassinato comum (C) apresentam mais atribuições de culpa do que os comentários na matéria sobre o crime definido como feminicídio (A). Isso também sugere que quando o termo feminicídio é utilizado, existe a tendência de as pessoas discutirem mais a utilização do termo do que o próprio crime que é noticiado e as possíveis soluções para enfrentá-lo, conforme exemplos abaixo:
As diferenças e semelhanças entre os comentários nos posts das matérias sugerem que o uso do termo “feminicídio” pode incomodar mais do que a própria ocorrência da violência contra uma mulher. Esse incômodo também se reflete na presença de desacordo, que é maior exatamente na matéria que utiliza o termo feminicídio (A) e naquela que propõe uma discussão sobre ele (B). As pessoas, de certa forma, se “esquecem” que o foco da notícia é um assassinato de uma mulher e passam a centrar a discussão na legitimidade do uso do termo. O diálogo abaixo, retirado dos comentários do post que enquadrava o crime como feminicídio (A), é um exemplo disso:
O desvio de foco do crime noticiado para o uso do termo feminicídio pode não ser algo negativo, uma vez que uma discussão é aberta e diferentes pontos de vista são defendidos e isso pode trazer ganhos epistêmicos (Chambers, 2017CHAMBERS, Simone. Balancing epistemic quality and equal participation in a system approach to deliberative democracy. Social Epistemology (31), United Kingdom, 2017 , pp.266-276 [ https://doi.org/10.1080/02691728.2017.1317867 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Outro ponto é o fato de as discordâncias estarem relacionadas ao gênero oposto, ou seja, mulheres discordaram mais de homens e vice-versa. Existe um acirramento de posições entre os dois gêneros: enquanto mulheres argumentam que os homens são os principais agressores, os homens argumentam que mulheres também matam. No geral, as mulheres tendem a defender a tipificação do feminicídio para a violência letal de gênero, enquanto os homens questionam a real necessidade dessa diferenciação, o que sugere que eles buscam questionar a existência de violência de gênero, negando, inclusive que sejam os principais agressores. Comentários que argumentam que homens morrem mais, que mulheres também matam e que a vida delas não vale mais do que a dos outros são exemplos disso:
Esses argumentos que buscam negar o que os próprios dados estatísticos mostram, ou seja, que cada vez mais mulheres morrem pelo fato de serem mulheres, não deixa de ser também um reflexo da própria sociedade. O não reconhecimento das especificidades desse crime é também uma forma de perpetuá-lo.
Sarmento (2014)SARMENTO, Rayza. Entre tempos e tensões: o debate mediado antes e depois da sanção da lei brasileira de combate à violência doméstica contra a mulher (2001 a 2012). Revista Feminismos (2), Salvador, BA, 2014 [ http://www.feminismos.neim.ufba.br/index.php/revista/article/view/115 - acesso em 17 de janeiro de 2019 ]. Considerações finaisEste artigo teve como objetivo analisar como cidadãos ordinários entendem e discutem a violência letal contra a mulher por meio de comentários na página do jornal O Globo no Facebook , e como os diferentes posicionamentos se relacionam ao enquadramento do post que originou os comentários. Todos os dados apresentados revelam certa resistência ao uso do termo feminicídio e, consequentemente, ao reconhecimento de que existe violência de gênero, sendo os homens os principais agressores de mulheres. Os casos de feminicídio não são nomeados como tal e tendem a ser tratados como casos isolados e crimes passionais. A resistência à tipificação do feminicídio está principalmente entre os homens, que, em sua maioria, não veem justificativa para fazer essa distinção entre violência letal contra mulheres e contra homens. Também foi identificado que homens e mulheres discordam mais entre si e, quando o fazem, tendem a usar uma linguagem desrespeitosa e ofensiva. De um lado, estão as mulheres defendendo a importância de se tipificar o feminicídio, de outro, os homens negando que são os principais agressores. Além disso, apesar haver uma ocorrência mais baixa do que a atribuição de culpa ao agressor, chama atenção o fato de haver comentários que culpabilizam a mulher, seja condenando o crime ou colocando a culpa unicamente na vítima. Comentários como “Muitas Mulheres não sabem diferenciar homem de marginal, então está aí o resultado” e “As mulheres é que não estão sabendo escolher. Ficam procurando homens que possam proporcionar emoções forte em vez de aprenderem a proporcionar a si mesma enquanto sozinhas” são exemplos disso. Negar ou questionar o fato de mulheres serem mortas simplesmente por serem mulheres é também ignorar o que mostram os dados estatísticos: o aumento das notificações dos casos de violência letal contra mulheres. Comentários contrários à Lei do Feminicídio, que negam a existência da violência de gênero, argumentando que homens morrem mais e que mulheres também matam, por exemplo, ignoram que os homens são os principais responsáveis pela morte de mulheres e que esses não são casos isolados. Este artigo possui limitações em relação à quantidade de notícias analisadas e também por não explorar a interseccionalidade, uma vez que os dados também mostram que as mulheres negras são as principais vítimas de violência, além de a raça e a classe das vítimas e dos agressores poder interferir no teor dos comentários. Uma análise com um banco de dados maior e que observe questões de raça e classe pode render discussões de maior relevância. Contudo, nossos resultados já reforçam o desafio que é pautar e nomear a violência de gênero, e como esse gesto também é uma forma de enfrentá-la. Além de o uso do termo feminicídio incomodar mais a uma parcela expressiva da sociedade do que a ocorrência dos crimes em si, a mulher ainda é vista como uma potencial culpada das situações de violências que sofre. Os questionamentos e resistências em relação à Lei do Feminicídio estão diretamente relacionados às opressões de gênero, que são estruturais na sociedade brasileira, mas também podem ser associados à falta de diálogo sobre a temática. Não houve um investimento em campanhas de informação e sensibilização sobre o tema, o que implica que grande parte da população tenda a pensar que “o homicídio de um homem é tão grave quanto de uma mulher" e que se mantenha o argumento de que "os homens morrem mais", conforme revelam os dados da pesquisa. Isso mostra a importância da implementação de políticas públicas sempre associadas ao diálogo e ao debate, para que novas legislações tenham receptividade entre a população.
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