O que é a hermenêutica metodológica de Dilthey

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https://doi.org/10.7213/1980-5934.31.053.DS09
Compreensão - Vida - História

A hipótese do presente estudo é a seguinte: a obra de Dilthey representa a verdadeira fundamenta-ção da metodologia própria ao estudo das ciências humanas. Em particular, a constituição de uma antropologia radicada no método compreensivo. Esse método é a principal estrutura sobre a qual podem ser erigidas as ciências humanas. Não se pretende vincular estreitamente toda a história do pensamento contemporâneo aos pressupostos da filosofia de Dilthey. A intenção é tecer um fio condutor suficientemente resistente a ponto de tornar-se a fundamentação da filosofia que se quer metodologicamente independente das ciências naturais.

DOCENTE do dep. de Filosofia da UFMG

AMARAL. M. N, de C. P. “Dilthey: hermenêutica da vida e universalidade pedagógica”. Transformação, Marília, v. 35. n. 1, p. 89-114, 2012.

DILTHEY, W. Filosofia e educação: textos selecionados. Trad. Alfred Keller e Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral. São Paulo: EDUSP, 2010.

DILTHEY, W. Ideias acerca de uma psicologia descritiva e analítica. Trad. Artur Morão. Covilhã: Lusosofia, 2008.

DILTHEY, W. Introducción a las ciencias del espíritu. Trad. Eugenio Imaz. México: Fondo de Cultura Eco-nómica, 2015.

DILTHEY. W. Literatura y fantasía. Tradução de Emilio Uranga e Carlos Gerhard. México: Fondo de Cultura Económica, 2013.

DILTHEY, W. Vida y poesía. Trad. Wenceslao Roces. México: Fondo de Cultura Económica, 2016.

LESSING. H.-U. “Wilhelm Dilthey — O filósofo das ciências humanas”. Aoristo. Toledo, v. 1, n. 3, p. 14-30, 2019.

v. 31 n. 53 (2019): Fenomenologia

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A partir da tradição sustentada por Dilthey, se pretendeu estabelecer uma teoria geral do modo como as objetivações da experiência humana podem ser interpretadas, defendendo a autonomia do objeto de interpretação, e à possibilidade de uma objetividade histórica na elaboração de interpretações válidas.

Dilthey adaptou o conceito de hermenêutica de Schleiermacher, como método de compreensão, e prosseguiu desenvolvendo-a no âmbito das suas investigações sobre o desenvolvimento das ciências do espírito. Dilthey publicou o célebre texto “Surgimento da Hermenêutica” (1900), em que tratou da busca de cientificidade para as ciências interpretativas no qual estabeleceu a distinção entre explicar (Erklären) e compreender (Verstehen). Para ele, a teoria hermenêutica poderia ser considerada a base para as ciências humanas ou Geisteswissenschaften, um modo de acesso privilegiado ao significado em geral (HEIDEGGER, 2012).

Dilthey adaptou o conceito de hermenêutica de Schleiermacher, como método de compreensão (doutrina ou teoria da arte de interpretar textos), tomando por base “uma análise da compreensão como tal e, incluindo no âmbito das suas investigações sobre o desenvolvimento das ciências do espírito, também prosseguiu no desenvolvimento da hermenêutica”. Schleiermacher colocou a hermenêutica, como doutrina da arte da compreensão, e enquanto disciplina, na relação com a gramática, a retórica e a dialética, sendo tal metodologia formal (HEIDEGGER, 2012).

A tradição hermenêutica de Heidegger e Gadamer orientou-se para a questão mais filosófica do que a interpretação em si mesma, defendendo que o ato da compreensão está ligado à descrição do que é; ”está a fazer ontologia e não metodologia”. Conforme seus opositores, ambos são críticos destrutivos da objetividade e pretendiam “mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras” (PALMER, 1986).

Heidegger avançou propondo que a hermenêutica, em seu significado mais moderno, seja abordada muito menos no sentido estrito de uma teoria da interpretação, mas que persiga o significado original do termo gregohermêutiká - que deriva de Hérmes, o deus mensageiro dos deuses - na realização do hermenéien (do comunicar), ou seja, da interpretação da faticidade que conduz ao encontro, visão, maneira e conceito fático. Entende ele por fático “algo que é”, articulando-se por si mesmo sobre um caráter ontológico, o qual é desse modo.

Já para Mannheim, a interpretação se ocupa da mais profunda compreensão do sentido, pois em seu conteúdo mais autêntico este somente pode ser compreendido ou interpretado. Assim sendo, as abordagens qualitativas trabalham com construtos sociais, cuja importância será reconhecida no processo interativo de pesquisa e de interpretação dos dados coletados (MANNHEIM, 1964).

Referências:
HEIDEGGER, Martin.  Ontologia – Hermenêutica da Faticidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.

MANNHEIM, Karl. Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation. Neuwied: Luchterhand, 1964.

                         Wilhelm Dilthey

O que é a hermenêutica metodológica de Dilthey

Wilhelm Dilthey nasceu na Alemanha, em  1833, e morreu na Áustria, em 1911. Em 1883, sua obra, Introdução ao Estudo das Ciências Humanas, delineou as especificidades de método para estas ciências. A obra causou polêmica nos meios científicos e filosóficos onde predominava a visão positivista que defendia o uso das metodologias das Ciências Naturais para a compreensão do espírito humano.

Dilthey fez parte do chamado romantismo alemão e foi influenciado pelos trabalhos de Friedrich Schleiermacher. De acordo com a escola romântica, a interpretação hermenêutica de textos escritos ocorre quando o intérprete é capaz de penetrar e compreender o contexto histórico e cultural da obra, partindo de sua consciência de também estar situado dentro de um contexto de vida próprio.

Considerações iniciais

Dilthey reconhece uma natureza distintiva das ciências humanas, afirmando que seu campo de estudo é formado por atores humanos conscientes e não por organismos ou objetos apenas sujeitos às leis de causa e efeito. Por isso, Dilthey formula, para as Ciências Humanas, uma metodologia própria, com base empírica. que ele chama de Compreensão (Verstehen) e que influenciou as teorias hermenêuticas de Heidegger e Gadamer.  Em seu ensaio escrito em 1910, Dilthey define hermenêutica como sendo um conjunto de regras para interpretar obras escritas e afirma que o propósito desta ciência, além de estabelecer interpretações filológicas, é servir de anteparo contra a subjetividade cética e os caprichos românticos para consolidar a validade universal da interpretação histórica e fundamentar as Ciências Humanas. Para ele, as manifestações da vida têm regras permanentes que nos servem de guia para a interpretação. A exegese dos registros escritos, por meio da hermenêutica, é o ponto mais alto desta interpretação. Assim, a tarefa hermenêutica é demonstrar que é possível conhecer o nexo do mundo histórico e encontrar o meio de fazer isto.

Embora Dilthey ainda relacione a hermenêutica ao texto escrito, pode-se dizer que a esta ciência, sob sua ótica, é vista como o modelo para todas as formas de compreensão da vida da mente e do espírito. Seria, então, o modo particular de cognição que fundamenta metodologicamente as ciências humanas.

A Tradição Hermenêutica

Dilthey identificou 4 ideias cruciais na obra de Schleiermacher para o desenvolvimento da hermenêutica.

1) A análise da compreensão é o fundamento para a codificação da interpretação;

2)O interprete e o autor compartilham uma “natureza humana geral” que permite a compreensão dos outros;

3)Por causa desta “natureza humana compartilhada”, o intérprete pode recriar as ideias do autor; e

4)O interprete pode compreender o significado inteiro do texto a partir das palavras.

Explicação e Compreensão

Com a diferenciação de dois modos de cognição, Dilthey justifica, filosoficamente, uma metodologia para as Ciências Humanas e outra para as Ciências Naturais. O modo para as Ciências Humanas é a Compreensão (Verstehen); o modo para as Ciências Naturais é a Explicação (Erklären). Por métodos distintos, ambas as ciências produzem proposições válidas universalmente. A Compreensão ocorre quando o intérprete é capaz de reconhecer o estado interior de outra pessoa através das expressões empíricas desta outra pessoa. Ao ver uma expressão facial, por exemplo, o intérprete tem acesso ao estado emocional interior de alguém. As palavras de um texto são, também, manifestações empíricas do sentido intencionado pelo autor.

Compreender os outros

Wilhelm Dilthey considera que há regularidade e estrutura daquilo que consideramos universalmente humano. Podemos conhecer tal estrutura por meio das manifestações de vida que se dão de três formas:

Conceitos, juízos e formações de pensamentos maiores: afirmam a forma pela qual as coisas estão no mundo. São frases que sempre têm o mesmo significado, independentemente do ouvinte, como, por exemplo: “Chove lá fora”, “O carro passou na rua” e também as elaborações mais complexas das explicações científicas.

Ações: em si mesmas não comunicam, apenas indicam uma relação com um propósito.

Expressões da experiência vivida: manifestações empíricas conectadas com a memória ou com o estado psíquico interior do autor de uma tal expressão, cabendo ao intérprete desvendar o teor e o grau desta conexão.  

Para compreender uma outra pessoa por meio de suas manifestações de vida, Dilthey sugere os métodos da transposição e da recriação. A transposição procura as relações entre as expressões empíricas manifestadas pelo autor e os estados psíquicos interiores deste. O intérprete busca uma espécie de identificação com o autor ao tentar descobrir o caráter relacional que existe em sua própria experiência e que o leve a se ver na posição do outro. A recriação ou reexperiência é o inverso do processo criativo. Inicia-se a busca pela interioridade psíquica de um autor por meio de sua obra, expressão empírica de sua experiência vivida. A apresentação do meio é fundamental para que se compreenda o tipo histórico e cultural da experiência vivida. O intérprete também deve levar em conta suas próprias características humanas ao recriar a vida psíquica de outra pessoa. Assim,  atitudes, poderes, sentimentos, esforços, tendências e pensamentos próprios do intérprete podem ser aumentados ou diminuídos, por meio da imaginação, para que se experimente um estado interior que jamais foi vivido de fato pelo intérprete.  A tese de Dilthey baseia-se no pressuposto de que o espírito objetivo possui uma ordem articulada em termos de tipos humanos. O ponto crucial da tese é a afirmação das conexões existentes entre as experiências de vida e suas expressões empíricas, aprendidas quando uma criança adquire cultura. Estas conexões permitem que compreendamos uns aos outros. Sem elas, não haveria possibilidade de comunicação entre os seres humanos. É por meio da Hermenêutica que podemos compreender as regras permanentes de manifestação da vida presentes na linguagem, considerada a expressão mais completa da mente ou espírito humano.


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